Nheengatu (Canções na Língua Geral Amazônica)

Em janeiro de 2016 fui convidado pelo professor Florêncio Vaz para gravar os alunos do Curso de Nheengatu da Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. O resultado foi o álbum “Nheengatu – Canções na Língua Amazônica Geral”, com 18 canções na língua indígena, todas cantadas pelos próprios alunos, muitos dos quais são professores nas suas aldeias e comunidades.

Algumas faixas são versões de canções tradicionais e populares, como “Parabéns pra você” (Kwe katú indé arama, faixa 14), “Cabeça, ombro, joelho e pé” (Mira pira, faixa 3), e o Hino Nacional Brasileiro (faixa 12). Outras são de compositores que escrevem em nheengatu, como Luís Alberto “Çairé”, Ademar Garrido e Miguel e Maria Baníwa. “Índio Civilizado”, música de Juvenal Imbiriba, que eu já havia gravado no disco “Carimbó do Arapiuns” (ouça aqui), foi traduzida nas aulas de julho de 2016, e cantada pelos alunos sob o título Maku ukuá wã ara (é a faixa 17), e teve a participação do próprio Juvenal.

A publicação de “Nheengatu – Canções na Língua Amazônica Geral” no YouTube vem acompanhada das letras (em Nheengatu) e traduções (em português), correndo em sincronia.

Com o auxílio dos professores de nheengatu Miguel Baniwa, Maria Baniwa, Ciça Veiga e Antônio Neto, também foi preparado este livreto com todas as letras e traduções do álbum.

Nheengatu_Letras

As gravações aconteceram entre janeiro e junho de 2016, no auditório da unidade Tapajós da Universidade Federal do Oeste do Pará, e no Centro Indígena Maíra, em Santarém. Eis imagens desses dias.

O professor Florêncio Almeida Vaz Filho, coordenador do Curso de Nheengatu, escreveu um texto de apresentação bastante informativo, que veio no encarte do disco, e que aqui transcrevo para que tenham uma visão mais precisa deste projeto.

“O CD “Nheengatu – Canções na Língua Geral Amazônica” é um dos frutos do processo de reorganização dos povos indígenas e valorização da sua identidade cultural, que envolve 70 aldeias na região do baixo rio Tapajós, no oeste do estado do Pará. Outros frutos são o documentário “Terra dos encantados: os povos indígenas no baixo rio Tapajós”, de Clodoaldo Correa (disponível: www.youtube.com/watch?v=sZUz2I8j36s), e o livro didático “Nheengatu Tapajowara”. CD, filme e livro foram produzidos sob nossa coordenação e graças ao apoio dos Frades Franciscanos por meio da Missão Central dos Franciscanos (MZF).

O Nheengatu, ou Língua Geral Amazônia (LGA), era falado amplamente pelos indígenas na região até meados do século XIX. Praticamente proibido no contexto da repressão que se seguiu à Guerra da Cabanagem (1835-1840) e, depois, preterido pela imposição da língua portuguesa, o Nheengatu quase desapareceu. Curt Nimuendaju (em “Os Tapajó”, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, 10, 1949, p. 98), que esteve em Santarém e arredores entre 1923 e 1926, sobre a Língua Geral escreveu que “[…] até hoje em Alter do Chão não está ainda completamente extinta”. Se em um povoado tão próximo da cidade de Santarém o Nheengatu mantinha-se vivo ainda naquela década, podemos supor que era ainda mais falado nos povoados mais afastados da influência urbana. Mas, ao longo do século XX, o processo de esquecimento continuou, e restaram apenas frases e palavras repetidas quase sempre pelas senhoras mais idosas.

Quando os moradores das comunidades ribeirinhas voltaram a se identificar como indígenas, em 1998, e se deram conta de que careciam de uma língua indígena, foi instantânea a associação com a antiga Língua Geral. E iniciaram com muito gosto o que chamavam de “resgate da nossa língua”, processo que se tratava, na verdade, de uma revalorização do Nheengatu, que continuava sendo utilizado, em geral, de modo irrefletido. Por exemplo, nos nomes de lagos, igarapés, animais, árvores, frutos, alimentos e instrumentos de trabalho. Devemos registrar que as aldeias do povo munduruku no baixo rio Tapajós também logo iniciariam o seu processo de aprendizado da língua munduruku.

Em janeiro de 1999, o Grupo Consciência Indígena (GCI), com apoio dos Frades Franciscanos, realizou a primeira oficina de Nheengatu em Santarém, ministrada por Celina Cadena Baré, indígena da região de São Gabriel da Cachoeira, rio Negro (AM). Nos anos seguintes, em conjunto com o Conselho Indígena dos rios Tapajós e Arapiuns (CITA), o GCI trouxe novamente Celina Cadena Baré e outros indígenas do rio Negro, que ministraram cursos e viajaram pelas aldeias nos rios Tapajós e Arapiuns, ensinando o Nheengatu. Foi o caso de Alberto (Beto) Baniwa e Vitor Cecílio Baniwa.

E, assim, o Nheengatu foi voltando a ser usado na região, dando sentido a palavras e expressões que já eram usadas e fazendo novas conexões com o passado. Desde o início deste processo, os indígenas demonstraram gosto pelos cantos em Nheengatu, que eram muito usados nos seus rituais públicos. Este é o caso de “Xibé puranga” (que veio do rio Negro) e “Se anama” (criada no rio Tapajós), antigos sucessos no baixo rio Tapajós.

Aprender o Nheengatu parecia aos indígenas como o resgate do passado, no sentido da sua origem indígena ou até mesmo na busca de sua identidade. Este desafio ficou ainda mais urgente depois da Marcha Indígena dos 500 Anos (em abril de 2000), em Porto Seguro (BA), quando os indígenas do baixo Tapajós ouviram outros líderes falar e proferir discursos nas suas línguas indígenas maternas. Por isso, ao voltar da Bahia, destacaram ainda mais o aprendizado do Nheengatu como uma ação prioritária. E assim foi nos anos seguintes.

Desde 2007, com a implantação da educação escolar indígena pela Prefeitura de Santarém, seguida pelas prefeituras de Aveiro e Belterra, os indígenas reivindicaram o ensino das línguas indígenas nas escolas municipais, no que foram atendidos em 2010. E, então, surgiu a necessidade de capacitação formal para os professores de Nheengatu que começaram a atuar nessas escolas. Já as escolas munduruku no baixo Tapajós também iniciaram aulas da língua munduruku com professores indígenas munduruku vindos das aldeias do mé- dio e alto rio Tapajós.

Foi nesse contexto que surgiu o Curso de Nheengatu, oferecido pelo GCI e pela Diretoria de Ações Afirmativas (DAA) da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), como um curso de extensão dessa instituição. As aulas ocorrem no Centro Indígena Maíra, da Custódia São Benedito da Amazônia (Frades Franciscanos), importante parceira do Curso de Nheengatu. Outros apoiadores do curso são: CITA, Grupo de Pesquisa Leetra (USP/UFSCar), Rádio Rural de Santarém e Pró-Reitoria da Cultura, Comunidade e Extensão (Procce/Ufopa).

O Curso de Nheengatu iniciou em julho de 2014, ministrado pelo professor Agripino Nogueira Neto (do povo Baré). Em seguida, os professores mestres Antonio Neto e Edilson Melgueiro (este do povo Baniwa) passaram a contribuir também com o curso. Foram os alunos dessas primeiras turmas de 2014 e 2015 que produziram e gravaram as músicas contidas neste CD, em um processo criativo que associou seus conhecimentos tradicionais com o aprendizado do Nheengatu. Da mesma forma e ao mesmo tempo, escreveram o livro “Nheengatu Tapajowara”. Ambos projetos foram desenvolvidos com o apoio da Missão central dos Franciscanos (MZF), que apoiou também a produção do filme “Terra dos encantados”.

A maior parte das músicas são criações originais dos próprios alunos do Curso de Nheengatu, como “Reiuri iké”, “Kuakatu reté” e “Tarubá nheengarisá”. Outras são versões de músicas populares, como “Kuekatu indé arama” (Parabéns pra você) ou regravações de músicas que já eram conhecidas e muito usadas nos rituais e outras atividades do Movimento Indígena, como “Kwa yané rendawa”, “Maku ukuá wã ara” e “Apigá marupiara”. Mesmo essas músicas passaram por um processo de reapropriação ou tradução durante o Curso de Nheengatu, o que justifica a sua inclusão neste CD.

E, na sua fase final (2016-2017), o Curso de Nheengatu foi ministrado pelos professores mestra Patrícia Veiga, Miguel Piloto e Maria Bidoca (estes dois últimos do povo Baniwa), que continuaram usando as músicas como um recurso pedagógico para o aprendizado da língua. Umas das marcas desse curso foi sempre garantir a presença de professores indígenas falantes do Nheengatu (que vem do rio Negro, no Amazonas) e acadêmicos especialistas no ensino da língua Nheengatu. Esses professores vêm de São Paulo e são ligados ao Grupo de Pesquisa Leetra. Este CD é uma produção coletiva de alunos e de todos estes professores indígenas e não indígenas. É o resultado de muita colaboração e criatividade dentro deste rico processo de aprendizado do Nheengatu.

O Curso de Nheengatu tem carga horária de 360 horas, dividida em quatro módulos de 90 horas cada, que são desenvolvidos em janeiro e julho. A primeira e a segunda turma se formaram em 2016. As duas últimas turmas se formarão em julho de 2017. Os alunos, na sua maioria, são professores indígenas que já atuavam ou passaram a atuar nas escolas indígenas na região, com um impacto altamente positivo no processo de reafirmação identitária indígena que ocorre na região.

Por fim, ofertamos este CD, como um fruto fresco e saboroso, aos estudantes do Curso de Nheengatu que, ao mesmo tempo que aprendiam, produziam o livro “Nheengatu Tapajowara” e o CD “Nheengatu – Canções na Língua Geral Amazônica”. Aqui estão suas mãos, sua autonomia criativa e suas pegadas, que ficarão para a história e que ninguém poderá apagar. Vocês são os autores de fato deste livro. Kuekatu reté (obrigado) também aos mbuesara itá (professores e professoras) e às pessoas e instituições que apostaram neste sonho, que agora é realidade, ou melhor, é música.”

PROF. DR. FREI FLORÊNCIO ALMEIDA VAZ FILHO
(Programa de Antropologia e Arqueologia – PAA/Ufopa)
Coordenador do Curso de Nheengatu

Capa do álbum Nheengatu (Canções na Língua Geral Amazônica)
Arte da capa do álbum Nheengatu (Canções na Língua Geral Amazônica), por Luciana Leal.
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Cantos dos calouros indígenas da UFOPA

No último dia 4 aconteceu uma recepção pros calouros indígenas da UFOPA, que terminou com um ritual realizado por eles mesmos na entrada do campus Tapajós. Os cantos que reuni nesta postagem foram gravados neste ritual. A primeira faixa é um “cântico de agradecimento”, comum a várias etnias. A segunda faixa (Surara e Ixé iandepá makú) é um canto borari, puxado por Adenilson Borari “Poró”, do DAIN/UFOPA (Diretório Acadêmico Estudantil Indígena). A terceira faixa é um canto Wai wai puxado pelos alunos Nilson Newsinu Wai Wai e Radson Tiotio Wai Wai; e no final tem um canto Munduruku, por Jair Boro Munduruku. Ouçam aí o som desses novos estudantes:

Se quiser baixar as quatro faixas, clique aqui (arquivo Zip). E abaixo estão algumas imagens desse momento.

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Hino ao Sol (Instrumental)

Este vídeo é um improviso com as bases sonoras que construí no Maschine para a gravação do “Hino ao sol”, uma das faixas de meu próximo disco, o “FGC Vol. 666”. É uma melodia indígena do Peru, e a conheci transcrita no livro “Apuntes de acustica y escalas exoticas”, de Blanca Cattoi. Apesar de ter acrescentado uma letra pro hino, aqui toco apenas as partes instrumentais. Na verdade ele é um mais um improviso mesmo, feito principalmente com a combinação das camadas instrumentais e aplicação de efeitos. Confira aí:

E aqui a partitura do “Himno al Sol”, como está no livro de Cattoi.

Partitura de Himno ao Sol,
Extraído do livro “Apuntes de acustica y escalas exoticas”, de Blanca Cattoi
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